quarta-feira, 7 de julho de 2010

Defesa dos direitos das mulheres ou hipocrisia imperialista?

A PROIBIÇÃO DA BURCA E DO NIQAB[1] NO ESTADO ESPANHOL

Por Cynthia Lub, de Barcelona (traduzido por Babi Delatorre)


Após um intenso debate no mês passado sobre a proibição do “véu integral" - burca e niqab – as cidades catalãs vetaram o uso da burca em edifícios públicos. Em Lleida, foi aprovado com votos do CiU (federação de partidos nacionalistas da Catalunha, de caráter conservador), PSC (Partido Socialista Catalão) e PP (Partido Popular, conservador e cristão). Também passou em Tarragona, Manresa e L'Hospitalet. Em Barcelona e Reus, o veto foi aprovado por um decreto, em Girona, fracassou e, em Terrassa, querem uma regulação estatal. Também em Coín (Málaga), primeiro país da região de Andaluzia, busca-se a regulamentação. A votação foi proposta primeiramente pelo PP e tem sido apoiada por todos os partidos catalães.

O argumento utilizado pelo PP é que o uso da "burca" e "niqab" é um atentado contra a "dignidade" das mulheres. O vereador de Serviços Sociais de L'Hospitalet, Dolors Fernández do PSC, argumenta que o uso do véu "é contra os direitos das mulheres e as torna invisíveis." O porta-voz do PP, Juan Carlos del Río, da mesma cidade, explicou que "vai contra a democracia e a liberdade" (El País, 22/06). Por outro lado, em Barcelona, argumenta-se que é uma medida de "segurança" a proibição em bibliotecas, centros de atendimento ao cidadão, edifícios e instalações públicas, creches, escolas de música, serviços sociais e mercados. A este respeito o prefeito Jordi Hereu afirma que a proibição "não é uma questão religiosa" e que também inclui itens como máscaras ou capacetes, sendo uma medida de segurança por ser uma expressão “de sentido comum”, "Não é possível entrar em um equipamento e que não se permita a identificação” (El País, 23 / 06).

Mas a realidade é que todos esses discursos não são mais do que ‘fachadas’ para, em nome da "luta pelos direitos das mulheres", avançar com leis que implicam em uma maior discriminação aos imigrantes, neste caso as mulheres, que com ou sem véu já eram invisíveis para o acesso à educação, a trabalhos dignos e que já possuem os piores contratos de trabalho; se é que tem trabalhos, já que a estas mulheres como a todas as imigrantes de qualquer nacionalidade, lhes restam aqueles trabalhos invisíveis como cuidar de crianças e idosos, o trabalho doméstico, entre outros. Por outro lado, o argumento de que é uma medida de "segurança" não faz mais do que aumentar as políticas repressivas não só aos imigrantes, mas também, como vem acontecendo sistematicamente, à juventude, aos ativistas de esquerda e dos movimentos sociais e lutadores.

Em diversos meios de comunicação, o presidente do Conselho Islâmico da Catalunha, Abdennur Prado, alegou que não existe apenas as mulheres que usam a burca no país e que, portanto, o debate é falso e serve para cobrir os problemas reais das comunidades muçulmanas, que são muitos e muito graves. Esta proibição criou uma onda de opinião da população que é usada para atacar toda a comunidade árabe muçulmana. Segundo dados do INE (Instituto Nacional de Estatística), a comunidade marroquina é a maior da Catalunha e Andaluzia, e 75,51% dos imigrantes paquistaneses no Estado Espanhol estão na Catalunha e esta população aumentou nos últimos dez anos. Mais de 70% do total dos muçulmanos residentes na Espanha vêm do Marrocos. Em seguida na importância, da Argélia, Paquistão, Irã, Líbano, Síria, Egito e Palestina, Tunísia.

Após a proibição do “véu integral”, mais racismo imperialista

Com a proibição da burca e do niqab[2] que provém do Afeganistão – onde a ocupação militar da OTAN, que inclui soldados espanhóis, longe está de libertar as mulheres – está sendo encoberto uma política racista e xenófoba utilizando um debate em certa medida falso e que se espalhou por toda a Europa. Junto aos municípios já nomeados do Estado Espanhol, a Bélgica foi o primeiro país a aprovar a proibição no final de abril, e a França está aguardando um debate parlamentar, em julho, para definir esta questão. Se aprovada no Parlamento, entrará em vigor a partir de março de 2011, após um período de "transição" de seis meses[3]. Outros países europeus como Holanda, Dinamarca, Itália e Alemanha, estudam adotar uma proibição similar em seus territórios. Todo esse discurso "feminista" é sustentado pelos mesmos partidos e governos que apoiaram a “guerra contra o terrorismo islâmico" no Afeganistão e a política assassina do Estado de Israel. Um governo que visa instruir moralmente países que vivem em condições terríveis causadas, principalmente, pela exploração e opressão dos países imperialistas. O Estado Espanhol mantém entraves com Ceuta e Melilla pertencentes ao Marrocos; a França bombardeou a Costa do Marfim sem qualquer pudor; EUA e as potências européias financiam guerras civis e conflitos étnicos na África; ou a América Latina carregando sobre suas costas as políticas de exploração das multinacionais. Portanto, com que autoridade o Estado Espanhol ou a França podem falar de "liberdade e democracia?" quando a sua política imperialista tem sido sustentada pela com o saque das massas dos países oprimidos e sua subseqüente repressão, onde as mulheres não são exceção. Estes países responsáveis pela dominação econômica e saques imperialistas, longe estão de fato, de ocupar-se dos direitos das mulheres.


Menos liberdade para as mulheres, mais discriminação aos imigrantes


As políticas de repressão e perseguição aos imigrantes no Estado Espanhol têm aumentado. Desde as tentativas da Câmara Municipal de Vic de Catalunha de implementar uma xenofobia institucional ao tentar proibir o atendimento dos imigrantes em situação irregular nos serviços de saúde e educação com o argumento de insuficiência de recursos para sustentar os serviços de saúde e educação, até as renovadas Leis de Imigração, e a ordem pública à polícia para deter os imigrantes na saída dos transportes públicos e em horário de serviço. Isso já é parte da paisagem das ruas turísticas de Barcelona, mas, sobretudo, do sofrimento das famílias de imigrantes que não podem levar uma vida normal por serem perseguidas nos bairros e cidades periféricas. A crise econômica é o pano de fundo das políticas xenófobas e anti-operárias em curso, e o governo de Zapatero tem girado cada vez mais à direita também nesta questão aumentando a repressão e a negação de direitos aos imigrantes. A isto se soma o tratamento desumano sofrido pelos imigrantes ao serem detidos nos Centros de Detenção com um saldo, neste ano, de dois jovens imigrantes encontrados mortos, um equatoriano e um marroquino.

Agora o Estado Espanhol se ocupa das mulheres...

Mas com um discurso de gênero hipócrita que se desfaz diante dos números assustadores de mulheres mortas por violência de gênero e, de acordo com dados do INE, são em sua maioria nativas. E com a violência exercida por este país sobre as mulheres imigrantes que são as que mais estão sofrendo com as conseqüências da crise e que nunca tiveram direitos básicos como trabalho digno e reconhecido, além de serem as que vivem a exploração do tráfico de mulheres, obrigadas a estar em situação de prostituição. Portanto, com essas leis proibitivas, longe de avançar nos direitos das mulheres imigrantes, se avança na discriminação impedindo-as ao acesso a locais públicos, ou seja, criando mais fronteiras para melhores condições de trabalho e acesso à educação e saúde; uma medida que as levará ao isolamento social e à reclusão em suas casas. Não é mais que a continuidade de políticas discriminatórias e racistas que este Estado opressor têm aplicado aos imigrantes e às mulheres imigrantes, em um contexto de crise sem precedentes em que as idéias xenófobas aumentam, desta vez convertidas em leis, tanto pelo PP e partidos de direita, como pelos ERC e PSOE. Como vemos, o discurso anti-imigração já não é exclusivo de grupos de extrema-direita, senão que são impulsionados pelos partidos parlamentares tradicionais.

A invisibilidade das mulheres imigrantes e sua dupla opressão de classe

Os deputados do PP não estão fazendo uma crítica ascética, mas sim desde um ponto de vista ocidental, num país onde a Igreja Católica tem uma influência considerável no estado e ativamente se mete na vida das mulheres, como vimos na questão do aborto. Além disso as mulheres também são invisíveis na cultura ocidental, talvez por outros meios mais sofisticados e, o pior, mais naturalizados. A mulher do mundo árabe tem sido historicamente o alvo do ataque do mundo imperialista ocidental, como uma cobertura para questionar todo o mundo árabe e muçulmano nos seus pontos de atraso, e justificar ideologicamente a penetração política, econômica, social e militar. É através da forma que as mulheres são tratadas que se pode ver o "atraso" destas sociedades. Esta dimensão cultural-religiosa, também será adotada por setores de feministas européias que não vêem o caráter de "dupla opressão das mulheres", e se dirigem a estas com falsas premissas e preconceitos raciais transmitindo, assim, sua superioridade, seus modelos racistas e imperialistas, deixando estas mulheres passivas e dóceis em relação a seus sistemas de origem. Essa forma ideológica que adquirem os diferentes imperialismos dominantes recai sobre as mulheres no mundo árabe com todo o seu peso, sofrendo esta opressão colonial ligada a opressão das mulheres com respeito a seus regimes próprios. Nos países do mundo árabe-muçulmano, historicamente, a opressão exercida pelos poderes nativos esteve acompanhada pela opressão exercida pelo poder colonial ocidental, o que resultou em estratégias variadas de emancipação contra a opressão de gênero, intimamente ligada à luta contra a marginalização social e política, e contra o legado colonial. Uma reconhecida escritora marroquina e intelectual do feminismo árabe, Fatima Mernissi[4], explica como tanto os regimes locais como alguns setores de feministas ocidentais subestimam seu poder de atuação contra a opressão: "Por tudo isso, que algumas feministas ocidentais vêem as mulheres árabes como escravas servis e obedientes, incapazes de tomar consciência ou desenvolver idéias revolucionárias próprias, sem seguir os ditames das mulheres mais liberadas do mundo (de Nova York, Paris e Londres), à primeira vista parece mais difícil de entender que uma posição similar nos patriarcas árabes."[5] A autora explica como esses processos de rebelião estiveram ligados aos processos de luta pela independência nacional e anti-imperialista antes, durante e depois dos processos de descolonização.

A opressão das mulheres é dupla: como mulheres e como trabalhadoras. E a opressão de classe se intensifica para as mulheres nos países coloniais ou semi-coloniais. Enquanto lutam contra a opressão de seus próprios governos, devem lutar contra a exploração e opressão imperialista. Portanto, nenhum governo dos países imperialistas, como o Estado Espanhol ou França, deve interferir na vida dessas mulheres: são elas, através de suas próprias organizações, que devem lutar pelos seus direitos, como tem sido durante os processos de luta anti-imperialista que ocorreram em Magreb, África ou América Latina. Por isso, repudiamos qualquer medida de proibição e qualquer política repressiva para com as comunidades nacionais, culturais e religiosas oprimidas no Estado espanhol; mais ainda quando vem de um Estado responsável pela dominação imperialista dos seus países de origem e de sua exploração e perseguição aqui. A luta pela emancipação das mulheres virá da luta contra a opressão e exploração e não das mãos daqueles que condenam à exclusão social e à superexploração do trabalho e sexual.


[1] Véu que cobre a cabeça e o rosto, deixando somente os olhos à mostra.
[2] Dolors Bramon, em seu último livro "Ser mulher e muçulmana" (Barcelona, 2009) explica como a burca é obrigatória na época do Talibã, mas que originalmente era a cobertura que as mulheres afegãs de classe alta utilizavam quando tinham se misturam com o povo. É uma peça que cobre da cabeça aos pés e permite ver através de uma grade. O uso obrigatório se mantém em vigor, exceto na capital Cabul. No que diz respeito ao niqab, explica a autora, é uma peça que cobre a cabeça e o rosto, deixando pouco mais de um centímetro de abertura à altura dos olhos. É utilizado principalmente na Arábia.
[3] A iniciativa lançada pelo governo do presidente francês Nicolas Sarkozy foi recentemente aprovada pela Comissão de Direito com o apoio dos deputados do partido governista da União, um movimento popular e de novo centro e sem votos contrários dos parlamentares de esquerda que estavam presentes. O texto proíbe o uso da burca e do niqab nos prédios públicos e na rua (lojas, cinemas, restaurantes e mercados), sob pena de multa de 150 euros ou um ‘curso de cidadania’. Os socialistas franceses estão escolhendo apoiar a posição do Conselho de Estado, a mais alta autoridade administrativa da França, para o qual uma proibição total da burca e do niqab poderia ser legalmente rejeitada.
[4] Fatima Mernissi, escreveu vários livros – traduzidos em muitas línguas – tais como: sexo, ideologia e Islamismo (1975), Sultanas esquecidas (1990), Marrocos através das mulheres (1991), Sonhos na porta. Memórias de uma menina do harém (1994), O medo da modernidade: Islamismo e Democracia (2007).
[5]Feminismo e árabes, de 29 de janeiro de 2005, pode ser encontrado no site “Pensamento Crítico” de Madrid: http://www.pensamientocritico.org

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