quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

PLANO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS III: Mais demagogia lulista com as mulheres e os trabalhadores

Por Diana Assunção e Clarissa Menezes

Uma simples passagem no Plano Nacional de Direitos Humanos III, o PNDH-3, que explicitava apoio à aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seu próprio corpo, foi alvo de uma enorme polêmica envolvendo a Confederação Nacional dos Bispos, o presidente Lula, o Ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi e os movimentos de mulheres ligados ao governo. Entretanto, esse episódio é também a expressão, em pequeno, do que foram os 7 anos de governo Lula, onde muito pouco ou quase nada de progressivo se conquistou no que diz respeito aos direitos das mulheres, ao passo que as posições reacionárias das igrejas, dos setores retrógados e a perseguição às mulheres ganharam nova força.

Vida para os torturadores, morte para as mulheres

Enquanto o governo retrocedeu em seus tímidos passos retirando do PNDH-3 a passagem que acenava apoio à legalização do aborto, também retrocedeu nos tímidos passos que buscavam questionar a violência e a tortura durante o regime militar do Brasil. A criação de uma “Comissão da Verdade”, que teria como objetivo dar uma nova interpretação à Lei da Anistia, foi seguida de uma intensa mobilização de diversos meios de comunicação como O Globo e O Estado de São Paulo, a cúpula militar e o ministro da Defesa Nelson Jobim, e também o DEM (antigo PFL, antiga ARENA, partido apoiador do regime militar) que declararam em alto e bom som sua oposição a todo e qualquer passo pelo direito à verdade e à memória e mais ainda contra qualquer possibilidade de punição aos torturadores, mandantes e apoiadores. E o Ministro Paulo Vanucchi não titubeou em retroceder transformando esses tímidos passos em minúsculos passos que farão prevalecer a ordem imperante desde o final dos anos 1970[1].

Isso significa que o governo continua permitindo vida livre e impune aos torturadores e seus mandantes, enquanto as mulheres são cada vez mais castigadas pela justiça burguesa e pela ofensiva da direita clerical, assim como pela demagogia do governo de Lula. A passagem que explicitava o apoio à “aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus próprios corpos” evidentemente não significava a legalização e descriminalização do aborto. Mesmo assim, com uma forte ofensiva a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), questionou esta passagem e também a união e adoção homossexual, e por isso o Ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, fez um mea culpa dizendo que foi um erro dele, já que se tratava de “uma formulação do movimento feminista, que não diz respeito à opinião do presidente Lula”[2], e que portanto retiraria essa passagem.

Ainda com esse retrocesso, o movimento de mulheres ligado ao governo, como a Marcha Mundial de Mulheres (PT), a União Brasileira de Mulheres (PCdoB) e a Articulação de Mulheres Brasileiras (PT), além de diversas ONGs, fazem questão de fechar os olhos diante de tamanha demagogia, colocando no centro de suas manifestações a luta pela concretização do PNDH-3. É a mesma demagogia que fez encher o ego destas feministas quando Lula buscou punir os deputados do PT contrários ao direito ao aborto. Neste momento, nos perguntávamos: de que vale a punição desses deputados, se Lula não legalizou o aborto em nosso país? É o mesmo que podemos pensar agora. Evidentemente que nem Lula e nem Paulo Vannuchi, quando assinaram este Plano, acreditavam que de fato poderiam concretizá-lo, ainda que fossem tímidos passos. De qualquer forma, um aceno ao movimento de mulheres governistas próximo às eleições de 2010 quando a candidata do PT é justamente uma mulher não lhes cairia mal. Ainda assim, os movimentos de mulheres ligados ao governo se manifestam agora pela concretização do PNDH-3, como se esse fosse a solução de todos os nossos problemas, sem ao menos questionar os 7 anos de governo Lula onde o direito ao aborto não nos foi dado. Para nós, sem uma ampla mobilização social do movimento de massas, dos trabalhadores, de direitos humanos, de mulheres, estudantes e organizações populares não é possível conquistar nem nosso direito à vida nem nosso direito à memória, pois o governo já deixou claro que nada acontecerá com os torturadores e que às mulheres, sobretudo as pobres, negras e trabalhadoras, o destino continua sendo a morte através da clandestinidade do aborto.

...algo a ver com o acordo Brasil-Vaticano?

Não podemos esquecer que em novembro de 2008 o presidente Lula foi ator de um acordo entre o Estado Brasileiro e o Vaticano que em resumo significa converter a Igreja Católica em beneficiária de uma série de privilégios, que envolvem benefícios fiscais, regime trabalhista de religiosos, casamento, imunidades, patrimônio cultural, ensino religioso nas escolas públicas, entre outros.

As mulheres da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, em sua declaração dizem “Outros pontos que ferem o tratamento equânime entre as religiões por parte do Estado, se referem ao compromisso do governo brasileiro em utilizar o dinheiro público na manutenção de bens de propriedade da Igreja Católica e a interferência de princípios religiosos em questões trabalhistas e matrimoniais”. Fica claro que este acordo aprofunda um atrelamento nacional e internacional do Estado brasileiro com a Igreja, e que, portanto nenhum tipo de decisão sobre a legalização do aborto poderia estar por fora deste consenso aprovado na Câmara e no Senado. Um retrocesso claro, que nem mesmo Fernando Henrique Cardoso tinha sido capaz de levar adiante.

O governo Lula dá um jeito então de sair ileso dessa discussão, defendendo o aborto como questão de saúde pública para atender o clamor das feministas de seu próprio partido e ligadas a seu governo; mas por outro lado mantém o aborto na ilegalidade, mantendo o pacto que fez com o Vaticano de interferir com princípios religiosos nas questões “matrimoniais” – o que expressa apenas uma continuidade da política que já vinha tendo durante os 7 anos de seu mandato, e também dos anos anteriores de FHC. Não à toa, justamente durante o governo Lula, o Brasil é escolhido como sede do “Encontro Mundial em Defesa da Vida” por ter sido “país modelo na luta contra o direito ao aborto”.

E mais demagogia rumo às eleições de 2010...

Hoje, há mais de 7 anos na presidência da República, sobre as resoluções e bandeiras históricas do movimento de mulheres, inclusive das mulheres de seu próprio partido, podemos dizer que Lula não tomou nenhuma medida concreta. O direito ao aborto continua sendo negado e as mulheres criminalizadas sobre o peso do Código Penal de 1940, sobre os direitos das mulheres versam leis do século passado, enquanto na realidade as mortes são conseqüências diretas desse conservadorismo cristalizados em leis e os alinhamentos políticos do governo com a Igreja. A Lei Maria da Penha que rendeu a Lula o prêmio da ONU na luta contra a violência às mulheres só foi possível tornar-se lei após uma mulher que quase foi assassinada ficar mais de 20 anos, paraplégica, lutando por seus direitos, demonstrando que no Brasil pra se lutar contra a violência é preciso ir muito além do que a justiça pode nos assegurar. Ainda assim, os avanços apresentados nessa lei não podem se concretizar até o final, já que fazem parte de um Estado burguês que sustenta e legitima a violência contra as mulheres. Para isso, vale dizer, que a mesma ONU que premiou Lula contra a violência as mulheres, coloca suas tropas sob a liderança deste presidente para estuprar as mulheres haitianas

Mas se em 7 anos, Lula não acenou nenhuma medida para descrimilizar e legalizar o aborto, por que em ano eleitoral faria isso? Se por um lado, a Igreja possui uma importante base eleitoral, o PT que pretende eleger uma mulher, também precisará do apoio do movimento de mulheres. Assim, Lula pode muito bem assinar um decreto sobre o direito das mulheres terem autonomia sobre seu corpo, e depois suprimi-lo, culpando os setores conservadores pela pressão exercida. Em pleno ano eleitoral, com Lula fazendo de Dilma Rousseff sua própria sombra em todos os eventos, as direções dos grupos de mulheres ligados ao governo não querem admitir o aceno demagógico de Lula com o PNDH-3. Tudo isso demonstra, cabalmente, o fracasso do projeto reformista das feministas do PT, PCdoB e outros partidos governistas, que por anos venderam a idéia de que “com Lula e o PT os direitos das mulheres seriam conquistados”. Ao contrário, nunca antes os setores reacionários tiveram a ousadia de utilizar a justiça para processar mulheres por terem recorrido ao aborto, como no Mato Grosso do Sul, coisa que somente no governo petista-lulista se viu. Isso é resultado, também, de uma estratégia reformista das feministas que atuam “por dentro da ordem”, impedindo a mobilização ativa das mulheres e suas organizações, deixando inclusive de exigir da CUT, CTB e demais organizações de massas que se coloquem a frente deste combate democrático. A demagogia lulista, apoiada por essas feministas, se transforma dessa forma em retrocesso. Por isso é necessário lutar pela organização independente das mulheres trabalhadoras, estudantes, donas de casa, sem nenhum atrelamento ao governo e aos patrões.

Gritar ainda mais forte neste 8 de março!


Diferentemente do que defende a Frente Pela Legalização do Aborto, atrelada ao governo Lula, não será possível arrancar estes direitos pelas vias das negociações com o governo e com os deputados e senadores. Por isso, sem esquecer o papel nefasto que o presidente Lula vem cumprindo com suas tropas assassinas no Haiti, chamamos todas as mulheres trabalhadoras, estudantes, donas de casa, terceirizadas, camponesas, organizações operárias, de mulheres, sindicais, de direitos humanos, em especial a Conlutas e o Movimento Mulheres em Luta a organizar no próximo 8 de março uma grande mobilização antigovernista e antiimperialista que coloque no centro a luta pela retirada imediata das tropas brasileiras que dirigem a MINUSTAH no Haiti. Mas também queremos gritar muito forte pela revogação imediata da Lei da Anistia, que enquanto não for revogada permite vida livre e impune aos torturadores, e gritar forte pelo nosso direito ao aborto, que enquanto negado massacra sobretudo as mulheres pobres, negras e trabalhadoras.

Revogação da Lei da Anistia. Punição aos mandantes, torturadores e seus apoiadores.

Direito ao aborto legal, seguro, livre e gratuito. Educação Sexual em todo o ensino público. Distribuição gratuita de contraceptivos. Anulação do acordo Brasil-Vaticano. Pelos direitos da mulher trabalhadora. Trabalho igual, salário igual. Efetivação de todas as trabalhadoras e trabalhadores terceirizados. Direito à maternidade. Licença-maternidade de 1 ano e creche 24 horas em todas os locais de trabalho, de estudo e nos bairros. Basta de violência contra as mulheres. Abaixo o assédio moral nos locais de trabalho.

Fora do Haiti as tropas brasileiras comandadas por Lula. Fora o imperialismo do Haiti e da América Latina. Que as multinacionais coloquem seus lucros a serviço de combater a catástrofe. Que os mantimentos e doações sejam distribuídos e controlados pelas organizações operárias, sindicais, feministas, de direitos humanos. Atendimento imediato a todas as mulheres grávidas.

Diana Assunção é dirigente da Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional e integrante do Núcleo da Mulher Trabalhadora do Sindicato de Trabalhadores da USP. Clarissa Menezes é militante da Liga Estratégia Revolucionária - Quarta Internacional e mestranda em Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ambas impulsionam o grupo de mulheres Pão e Rosas.

[1] “Punição dos mandantes, assassinos, torturadores e seus apoiadores!” do site da LER-QI (http://www.ler-qi.org/spip.php?article2141)
[2] “Vannuchi: Alteração do decreto sobre descriminalização do aborto deve sair em duas semanas” do site O Globo (http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/01/29/vannuchi-alteracao-em-decreto-sobre-descriminalizacao-do-aborto-deve-sair-em-duas-semanas-915738850.asp)

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